Estranhos Que Não São Estrangeiros
[Chineses] não são viajantes do exterior que desembarcaram em nossas praias. Eles estão aqui há tanto tempo quanto nossos ancestrais. Eles são, na verdade, indonésios, que vivem e morrem na Indonésia também, mas por causa de um certo véu político, de repente se tornam estranhos que não são estrangeiros.
Pramoedya Ananta Toer, autor indonésio de romances e histórias
de sua terra natal e de seu povo. Março de 1960 [1]
Se opondo à PP10
Durante 1959-60, Pramoedya Ananta Toer escreveu uma série de cartas íntimas publicadas semanalmente em Bintang Minggu dirigidas a Ch. Hs-Y em P, mais tarde conhecido como as iniciais de Chen Xiaru, sua correspondente feminina na China. Publicadas em uma época de forte política anti-chinesa, as cartas foram escritas para se opor à assinatura do Regulamento Presidencial nº. 10 que forçou todos comerciantes chineses varejistas em vilarejos a fecharem seus negócios em 1º de janeiro de 1960. Embora as cartas tenham sido reimpressas várias vezes em outros jornais e tenham alcançado um grande número de leitores indonésios, o livro que compila essas cartas foi publicado logo depois, em 1960, com o título Hoa Kiau di Indonesia (“Os chineses na Indonésia”)e provou ser muito controverso. Foi proibido pelo Estado e Pramoedya foi preso pela primeira vez em território indonésio. O que preocupou Pramoedya na época foram os crescentes ataques ao chineses pelo exército e pelo aparato estatal, além de uma linguagem burocrática repressiva que surgiu após a segunda metade da década de 1950.
Um ano antes da publicação das cartas, rumores sobre a implementação do PP10 já circulavam entre as comunidades chinesas nas áreas rurais e urbanas, criando pânico e um sentimento geral de desconfiança sobre o futuro prometido pela nova nação moderna. Embora o regulamento tenha como alvo os indonésios-chineses das áreas rurais, muitas famílias das cidades se refugiaram em países vizinhos para salvar sua família, negócios e integridade. A família Lie de Semarang i conhecida por ter seguido o exemplo [2] ao solicitar vistos de imigração para o Brasil, que foram aceitos no final do ano de 1958. Os rumores e as possíveis implicações deste regulamento podem ter sido, para esta família, a gota d’água de desconfianças acumuladas sobre as perspectivas sombrias, ao imaginar um futuro inseguro em sua cidade natal. No início de 1959, antes da assinatura do PP10, a família Lie chegou ao Brasil para começar de novo, deixando tudo para trás: sua livraria e negócio de sucesso, parentes e casa.
Buscar as respostas relacionadas ao motivo pelo qual esta família indonésia, que possuía uma empresa bem estabelecida, decidiu inesperadamente fazer as malas e seguir para as Américas é uma busca especulativa. Nosso papel não é o de desvalorizar a história nem o de colocar a narrativa desta família como algo essencialmente marginalizado ou discriminado por conta de sua origem, herdada de um grupo étnico, mas reunir em mãos as circunstâncias externas e internas como uma forma de refletir sobre como suas subjetividades foram moldadas pelas estruturas de poder da época. Os fatores externos são os contextos sociais, políticos e culturais que moldaram suas identidades sociais, e os fatores internos entre o que foi herdado (família, educação, oportunidades, etc.) e as formas como estes foram negociados dentro das estruturas sociais existentes.
A hifenização
Para Pramoedya, o nacionalismo oficial foi o vocabulário em ascensão que afastou os chineses da Indonésia, argumentando que isto foi “feito” por meios políticos, culturais e econômicos, com o Estado construindo uma definição nítida que foi então usada em ações anti-chinesas . [3] Com base na ideia de que o Estado estava “fabricando” os chineses (e de fato os indonésios também!), proponho olhar esse processo como um procedimento que se estende por séculos e em muitos países, uma coreografia de cima para baixo que moldou os indonésios-chineses como entidades no entre (hifenizadas) e precarizadas, nunca fixas, mas em um estado constante de entres e transitoriedades—- de origens intermediárias ou simultâneas, nacionalidades, grupos sociais e étnicos. A hifenização, esse entre, também é uma maneira de refletir sobre suas posições sociais móveis dentro das estruturas da sociedade e de identidades fluídas (com sufixos adicionais como inter-, trans- ou não-) determinadas por suas experiências antecedentes complexas e particulares. Embora a atribuição em português de chineses-indonésios seja uma representação contundente dessa hifenização, o termo indonésio, Tionghoa, a personifica. Essas coreografias as orientaram a assumir certas posições sociais, políticas e econômicas que eram simultaneamente vantajosas e prejudiciais, ditadas pelo reforço das incertezas.
As condições de vida dos chineses na Indonésia foram inquestionavelmente problemáticas durante toda história do país, começando com a ocupação colonial holandesa até muito depois da independência. Sob o governo das Companhia Holandesa das Índias Orientais, que segregou seus “subordinados” por divisões raciais e de classe, a população chinesa estava situada no meio, sob o grupo do Leste Estrangeiro (junto com árabes e indianos). Sua posição legal sob a lei colonial era ambígua, pois eles tinham privilégios econômicos como os europeus, e eram prejudicados em questões de direito como os povos nativos da classe mais baixa. [4] Nas esferas econômicas, sua posição intermediária foi particularmente intensificada ao serem colocados forçadamente pelos holandeses como intermediários entre os dois grupos sociais opostos, e muitos encontraram vagas nos setores comerciais como atacadistas entre os dois. Como resultado, eles emergiram principalmente como uma classe média economicamente estável pós-independência, sob um novo olhar racializado da população nativa, que foi influenciada pela desconfiança e preconceito acumulados sobre sua lealdade ao sonho da independência.
Esta condição “herdada” hifenizada teve complicações depois de 1945 por visões e regulamentações inconsistentes sobre nacionalidade, cidadania, assimilação, e partidarismo, que muitas vezes eram reduzidos a uma resposta binária de sim-ou-não para escolher entre o lado indonésio ou o lado chinês para assim “consertar” essa hifenização (ou para “contrariar” visões discriminatórias) e ser uma prova de sua lealdade. Seu status na nova nação foi imediatamente tratado pelo estado com políticas anti-chinesas apoiadas no ideal de homogeneidade nacional e nacionalista. A linha do tempo neste volume, Registros ao Estranhamento, oferece uma visão cronológica das regulamentações governamentais dirigidas aos chineses-indonésios desde o período da Democracia Liberal até o início da Democracia Guiada, particularmente preocupada com as mudanças nos direitos econômicos e legais para chineses estrangeiros e as leis de nacionalidade que, na realidade, afetaram todos os chineses-indonésios. Devido à institucionalização do nacionalismo oficial, denominado como pribumisasi ou indonesianisasi[5] para impulsionar o nascimento de uma economia nacional independente (leia-se: economia nativa da Indonésia), as pessoas de etnia chinesa foram gradualmente excluídas de possuir direitos sobre indústrias de grande escala, licenças de importação e exportação , entre muitos outros obstáculos legais. Como resultado das nacionalização da economia e das leis, muitos chineses-indonésios que viviam na cidade após os anos 1950, se voltaram para indústrias de pequena escala, entre as quais estava a indústria gráfica.[6]
LIONG: Lie e Ong
Como pano de fundo, há uma coreografia de eventos que levou muitos chineses-indonésios a assumir determinados papéis econômicos e sociais, uma coreografia que produziu opiniões populares estereotipadas, principalmente pejorativas, sobre esta minoria étnica vista exclusivamente como um grupo homogêneo de estranhos. Desta perspectiva, talvez possamos entender alguns dos contextos implícitos que tenha levado a família Lie a se dedicar em um negócio de publicação de histórias em quadrinhos, ao lado da venda de livros importados, bem como sua decisão posterior de deixar o país. Além de sua condição hifenizada, moldada pelas estruturas de poder da época, que os colocava como os Outros. Precisamos olhar para as maneiras pelas quais eles navegaram com sua identidade e possibilidades, dentro das dinâmicas sociais existentes.
Há muitas incógnitas na história de como a família Lie gerenciava sua livraria e editora, tal qual se possuíam uma licença de importação ou se cooperavam com indonésios nativos. A partir das histórias de seus filhes — cuja filha mais velha tinha 12 anos na época da migração — transmitida a Daniel Lie durante a idade adulta, reunimos os fatos e as possíveis origens da identidade da família e as contribuições por meio da Toko Buku Liong como uma forte casa criativa (que será discutida no próximo volume). As décadas, entre os dias 2 e 21 de janeiro é uma entrevista feita por Daniel Lie em 2016 com sua tia Yani, a filha mais velha de Lie e Ong, uma conversa íntima sobre as memórias distantes de uma vida passada na Indonésia.
A partir dessas histórias e de nossas pesquisas, sabemos agora que a Toko Buku Liong iniciou sua atividade logo após a independência, na praça central de Semarang, na esquina da rua Purwodinatan, no. 27 (agora Letjen Suprapto), em frente à Igreja Blenduk. Liong na tradução indonésia significa Dança do Dragão, e uma hibridização dos nomes Lie e Ong, to marido Lie Djoen Liem e a esposa Ong King Nio. Além da venda de livros, a livraria também fornecia materiais escolares (utilitários, livros, mochilas), discos, brinquedos, selos para colecionadores, cartões postais de Hollywood, bijuterias e publicações independentes como histórias em quadrinhos. Os livros importados eram principalmente holandeses, enquanto as outras publicações foram escritas em inglês ou indonésio. Não era vendido livros em chinês, embora na época, o idioma chinês ainda fosse ensinado na THHK (Tiong Hoa Hwe Koan), a escola chinesa na Indonésia que funcionou até 1957, quando foram proibidas e fechadas. A loja tinha seis funcionários e entregava seus livros pelos correios, e também pelo próprio Lie Djoen Liem em suas muitas viagens por Java, e possivelmente para outras ilhas. As pequenas publicações e quadrinhos foram impressas na Toko Buku Liong e eram uma mistura de estilos, métodos de produção, gêneros e autorias coletivas, e tinham diversas influências culturais, desde quadrinhos estadunidenses, contos populares chineses e personagens javaneses locais.
Lie Djoen Liem nasceu na pequena cidade vizinha de Kudus em 1916 e mudou-se para Semarang junto com sua família, provavelmente na adolescência. Ele conheceu sua esposa em uma viagem de trem de Jacarta para Semarang durante a Segunda Guerra Mundial, e os pais deles concordaram com o casamento. Em 1947 nasceu sua primeira filha, e, até 1958, Ong King Nio deu à luz a mais sete filhos. Por volta de 1945 a 1950, antes da abertura de Toko Buku Liong, o casal tinha uma pequena banca para empréstimo de livros, um negócio semelhante ao que o pai de Djoen Liem tinha, esse que os ajudou a administrar a loja até a migração. Ambos falavam holandês, provavelmente tendo sido educados durante a ocupação colonial na HCS (escola holandesa-chinesa) e / ou MULO (More Advanced Low Education) para o ensino médio, mas usavam javanês e indonésio em casa e dominavam a escrita em Bahasa Indonésia como vemos nas muitas publicações em quadrinhos que ambos escreveram. Os pais de ambos nasceram em Java durante a ocupação holandesa e os avôs de Lie Djoem fizeram parte da primeira geração de chineses que migraram, mas a língua chinesa não foi transmitida a eles, de modo que não podiam falar nem entender bem. Eles nomearam seus filhos usando nomes chineses, mas cada um recebeu um apelido holandês que eles carregaram por toda a vida.
Ong King Nio foi fundamental para administrar os negócios, administrar as finanças, coordenar a loja e cuidar da grande família, ao mesmo tempo em que também escrevia e produzia pequenas publicações sobre moda e comida que assinou sob o nome de Eleonora Ong. Ela era uma admiradora da moda de Hollywood, gostava de estar em sintonia com as últimas notícias dos Estados Unidos, e tanto ela quanto as roupas de seu marido eram um indicador de sua preferência pela cultura ocidental. Todos os dias antes de fechar a loja, eles tocavam o disco Jambalaya (On the Bayou) da cantora americana Brenda Lee. Sua educação holandesa também serviu instrumentalmente na cidade de Semarang, onde os negócios eram administrados principalmente pelos holandeses, como um importante porto e assentamento durante a ocupação colonial e após a independência.
O íntimo e o afetivo
Voltando aos “estranhos que não são estrangeiros” de Pramoedya, suas cartas para sua correspondente íntima da China significam como um ato íntimo de co-união entre duas pessoas pode ser um gesto que reivindica a unidade nacional entre chineses e indonésios, pelo que qualquer tentativa de alienar um do outro é um ato prejudicial à própria identidade nacional.[7] Isso se torna particularmente importante em nosso estudo retrospectivo da família Lie, não somente em relação ao estado conflitante dos acordos, gerado pela política nacional da época, mas também como prova do poder de nossas relações íntimas para questionar e abordar a história e a política nacionais. Nossas solidariedades pessoais, emoções e memórias também podem ser identificadas com as políticas públicas.
Em nossa busca para situar os fragmentos biográficos dos avôs de Daniel Lie – os estranhos que Daniel nunca teve a chance real de conhecer, ouvir ou se relacionar – também encontramos estranhos que não são estrangeiros. Que estiveram presentes ao longo de sua vida no Brasil e aqui na Indonésia com memórias distantes que agora são recuperadas no esforço de compreender as complexidades anteriores à sua migração para mais uma terra estrangeira. Ong King Nio faleceu quatro anos antes do nascimento de Daniel e as narrativas de sua vida na Indonésia e no Brasil começaram a se desdobrar em novas direções, relacionadas ao seu papel na família e como produtora do Toko Buku Liong. Em seu ensaio Caminhando ao Lado de ONG, Daniel Lie traz a imagem de revisitar a Indonésia junto com Ong King Nio após 60 anos da migração da família, agora um movimento reverso de chegar ao lugar de onde partiram, apontando para a circularidade infinita de ser “para sempre estrangeirx”. Como tal, os estranhos aqui assumem uma dimensão dupla, que reflete sua identidade como chineses-indonésios, e as relações familiares intergeracionais que falam como as considerações pessoais e intimidades são colocadas como alternativas para ler e escrever as suas histórias.
Ao estudar os materiais de arquivo da família Lie, encontramos uma prática afetiva e crítica na construção da memória. Existem relações íntimas inerentes ao encontro, ao relembrar (e ao imaginar), bem como à criação de um arquivo. No entanto, quais são as possibilidades de arquivar emoções ou sentimentos? E mais importante ainda, esses arquivos afetivos podem produzir conhecimento e significado como alternativas ou mudanças de como escrever a história de grupos marginalizados? Como podemos identificar, como nas cartas de Pramoedya, relações íntimas nos relatos oficiais da história?
Endnotes
[1] Tradução para o inglês tirada de Sumit K. Mandal, ‘Estranhos que não são estrangeiros‘ Pramoedya’s Disturbing Language on the Chinese of Indonesia in Pramoedya Ananta Toer, The Chinese in Indonesia, uma tradução para o inglês de HOAKIAU DI INDONESIA publicada pela primeira vez em 1960, Select Publishing, Singapura, 2008.
[2] Entrevista Jongkie Tio, Semarang Janeiro de 2020. Jongkie Tio é um famoso contador de histórias e dono de restaurante em Semarang. Ele testemunhou os anos ativos de Toko Buku Liong durante a década de 1950. Ele é a principal fonte para afirmar que a família Lie migrou para o Brasil por causa de um mal-entendido sobre o PP10.
[3] Ao usar esta língua, eles foram separados da “nação” (como bangsa) e do “nacional” (como sendo exclusivamente indonésio “nativo”, não estrangeiro ou ter “caráter” estrangeiro) para os quais Pramoedya propôs o termo nasion para refletir um conceito inclusivo e plural de nação. Ele desafiou essas definições construídas escolhendo o termo Hoakiau em vez de Tionghoa ou Cina, argumentando que sua estranheza não pode ser tão bem definida e que eles estão, na verdade, parcialmente contidos em “nós”, os indonésios.
[4] Leo Suryadinata, “Negara dan Minoritas Tionghoa di Indonesia”, in WACANA, Vol.1, No.2, October 1999.
[5] O termo “indonesianisasi” foi cunhado pelo cientista político norte-americano John Sutter em sua defesa de dissertação de doutorado na Universidade de Cornell em 1959.
[6] Herbert Feith, O Declínio da Democracia Constitucional na Indonésia, Equinox Publishing, Cingapura, 2007 [1962].
[7]idem