Ao saírem do local onde nasceram, as raízes que arrancaram mantiveram algumas de suas ramificações;
dessas plantas germinaram e se transformaram em árvores. Hoje, de seus galhos colho seus frutos.

Lie Djoen Liem e Ong King Nio tiveram uma décima criança, uma que o corpo se materializou somente com papel e tinta: meu tio Wiro.
A primeira vez que conheci o tio Wiro, eu tinha 13 anos de idade. Quando me perguntavam o que eu queria ser quando crescer, sempre respondia que gostaria de ser desenhista de histórias em quadrinhos(HQ). Essa decisão da infância foi influenciada pelas grandes quantidades de HQs que estavam constantemente em casa. Só mais tarde, depois de começar a estudar quadrinhos, que esse encontro aconteceu: meu pai me contou que meus avós também faziam quadrinhos, e do seu arquivo me apresentou esse tio até então desconhecido, a segunda edição de Wiro Anak Rimba Indonesia (Wiro, o menino da Selva Indonesiana), uma cópia original da década de 50, a única que sobreviveu à migração e às muitas enchentes da sua antiga casa em São Paulo.
A importância desse quadrinho só fez sentido conforme fui crescendo e comecei a buscar entender as complexidades da minha história familiar – Porque comecei a existir no Brasil e não em qualquer outro lugar? Como foi a trajetória dos que vieram antes de mim para que minha existência se tornasse possível?
Desde que me tornei adulte, foi na primeira vez que estive na Indonésia que soube como a vida desse tio de papel e tinta continuou. Soube que Wiro se tornou famoso e ainda mais popular entre a juventude indonesiana. Que não somente teve reconhecimento na época que foi originalmente publicado, mas nas suas aparições seguintes ganhou ainda mais atenção. Se tornou presente no imaginário de diversas pessoas – só que desta vez, seus pais, autores, foram deixados de lado.

Me pergunto o que aconteceu para apagarem sua autoria? Entendo que se foi publicado muitas vezes, e com a crescente popularidade, houve um significado político para a sua constante re-aparição – Wiro representou um modelo do que um homem cisgênero da Indonésia deveria ser, naquela nova face do capitalismo patriarcal.
O quanto poderia alguém com um nome chinês moldar a identidade do novo indonésio? Até que ponto os alvos de exclusão do novo projeto de construção da identidade nacional também contribuíram ironicamente para isso? O que acontece quando uma “minoria” impacta uma “maioria”?
Ao mesmo tempo, nenhum dos meus familiares sabiam da fama desse “décimo irmão” – tanto meu pai como minhas tias desconheciam as proporções que Wiro ganhou na sua terra natal, tampouco a abrangência e o impacto da palavra famoso.
Emocionalmente, essa história me impactou: penso como Lie Djoen Liem e Ong King Nio se anularam enquanto artistas e criadores ao deixarem para trás sua terra natal e migrarem para o Brasil. Para Ong King Nio, vejo ainda um apagamento duplo por conta das barreiras profissionais imposta à gênero por ela ser uma mulher artista.
As mudanças que a imigração causou foram tão traumáticas a ponto da única possibilidade de começar de novo seria esquecendo seu próprio passado?

No Brasil, não havia outra família da indonésia, estavam isolades. Antes empresários do ramo de livros com riquezas e sucesso, agora vendedores de comida lutando pela sobrevivência básica. Em Semarang eram criadores de peças culturais que influenciam até hoje a Indonésia, em São Paulo um grupo de imigrantes que era lido como qualquer asiático pelo olhar racista e excludente do Brasil. Tiveram que escolher entre o trauma (lê-se Brasil) ou a não-sobrevivência (lê-se Indonésia). Lembrar não era útil pois tudo que se configurava no pós-imigração era a sequência de uma destruição do que foi antes: um pós-fim.
É irônico que as pessoas que ajudaram a formar uma narrativa sobre a nova identidade indonesiana pós-independência não puderam participar de sua própria construção. Após a independência da Holanda era urgente forjar esse novo perfil de uma maneira massiva – aí Wiro funcionou muito bem como propaganda nacional, sendo um dispositivo da cultura pop. Os valores presentes no maior sucesso de meus avós, sua maior criação gráfica, tornou-se contra o que essas pessoas eram. Um conflito entre a nova identidade indonesiana contra a identidade pré-independência.
Wiro precisou esquecer seus pais para ter o sucesso que desejava desde criança: dominar a natureza selvagem, conquistar territórios dentro do arquipélago, lutar com armas, se aliar ao ocidente, receber riquezas.

Hoje eu percebo que nenhum dos seus pais, autores, puderam saber o que aconteceu com sua criação. Todas as reedições de Wiro foram feitas sem consentimento, talvez pelas barreiras de comunicação daquela época onde fazer uma ponte entre Brasil e Indonésia não seria tão simples assim, ou com a ausência de seus criadores a possibilidade de se apropriar de uma obra era mais fácil.
Busco formas não-binárias de ver isso tudo. Além da dualidade Luz e Sombra.
Como artistas, Lie Djoen Liem e Ong King Nio foram capazes de criar uma obra que sobreviveu por conta própria – Wiro quando era criança fugiu da sua casa após levar um tapa na cara de um de seus pais e foi morar na floresta por conta própria como um refúgio e lá pode ter suas aventuras. Ao voltar para a sociedade o navio com seus autores já havia partido para o Brasil e Wiro ficou na Indonésia. Quanto mais o tempo passava, mais as novas raízes cresciam, de Wiro na Indonésia, dos Lies no Brasil.

Eu como alguém que também trabalha com arte, eu enquanto artista, vejo toda essa história como uma contribuição. Criar algo artístico que contribui para a sociedade e que isso não precisa ser constantemente nutrido pelos seus criadores como uma manutenção da memória para a obra continuar a existir. Diferente de como arte e artistas no mundo contemporâneo precisam subsistir juntes para continuar tendo relevância.
Vejo isso como um eco – um legado sem intenção. Mas ainda, um legado.
A pergunta que me acompanha há anos referente ao meu fazer é: Como criar algo que se torna uma contribuição social?
Sinto que isso foi feito pelos meus avós – o legado do que fizeram ultrapassou os limites da Toko Buku Liong e assumiu dimensões que influenciaram, moldaram e guiaram os desejos de muitos – uma reverberação através dos tempos.